segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Pray for my patronum

Um amigo me ensinou essa oração, que achei fortíssima, e que compartilho com vocês.
Aliás, foi através do ensino dessa oração que começamos a conversar e nos tornamos amigos.
Então, em homenagem ao amigo Matheus Gabrich, uma oração ao seu animal guardião.

Ancestrais
antigos aliados
aqueles que trazem a memória do tempo
ouçam meu pedido
sintam minha intenção
e estejam comigo

nas patas do cavalo
nos olhos da coruja
nas asas da águia
nas garras da onça
no bico do gavião
que se acenda em minha alma
a força do meu animal guardião

terça-feira, 26 de julho de 2011

Realização (Je vous salue, archéologues!)

Créditos da foto: Habitus Consultoria.

A foto acima foi a motivadora da vistoria de hoje: é um polidor pré-histórico. É um local onde são produzidas lâminas de machado polido.
Há muitos anos atrás, um cara, como eu e você, se postou frente a essa pedra e passou horas, com a vista do Rio Verde (MS), criando um instrumento. Com este instrumento, ele derrubou árvores e ajudou a dar continuidade à sua civilização. Ele não sabia que se comunicaria comigo através daquele trabalho. Apenas o fez com amor, porque precisava dele para seu povo.

Hoje, pessoas como eu o escutam; pessoas como eu dão voz a ele. São chamados arqueólogos. São tipos por vezes estranhos, que ficam longe de casa por tempos e tempos, para escutar o que pessoas desconhecidas tem a dizer. Não é a vida mais fácil do mundo. Mas, certamente, é uma vida extremamente gratificante.

A datação deste sítio é de cerca de 900 anos A.P. (Antes do Presente, contado a partir de 1950). O artesão que utilizou este polidor me mandou um presente, mais de um milênio depois de produzi-lo! Hoje, 26 de julho, comemora-se o dia do Arqueólogo. Já havia encontrado lâminas de machado polido, mas nunca havia visto um local onde elas são feitas. Não foi a toa que tive contato com isso hoje.

É uma renovação de votos. Eu amo o que eu faço. Tive a bênção de escolher uma profissão que me completa, que me satisfaz, que contribui com minha felicidade, pelo prazer de servir ao meu povo, produzindo conhecimentos, alimentando a história, educando... assim como meu presenteador fez, há mais de 1000 anos atrás, postado frente a esta pedra.


Obrigado, meu desconhecido amigo, pelo seu presente! Fez me lembrar porque escolhi trabalhar com vocês há 13 anos!

Companheiros de profissão, eu os saúdo com lágrimas de alegria!

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Depois de nós

Olá, meus caros...
Mais uma ausência prolongada. Espero, mais uma vez, que me perdoem.
Muita coisa mudou desde o último post. Há muito a dividir. A Lua anda seguindo suas fases e, mensalmente, ela cresce, se enche, mingua, renova... Estou tentando aprender com ela, mas controlar as fases exige constância, coisa que eu não tenho. Mas uma descoberta musical recente vem cantar meu momento, e é isso que quero dividir com vocês hoje. A canção chama-se Depois de nós, e diz mais ou menos assim:

Hoje os ventos do destino
Começaram a soprar
Nosso tempo de menino
Foi ficando para trás
Com a força de um moinho
Que trabalha devagar
Vai buscar o teu caminho
Nunca olha para trás

Hoje o tempo voa nas asas de um avião
Sobrevoa os campos da destruição
É um mensageiro das almas dos que virão ao mundo
Depois de nós

Hoje o céu está pesado
Vem chegando temporal
Nuvens negras do passado
Delirante flor do mal
Cometemos o pecado
De não saber perdoar
Sempre olhando para o mesmo lado
Feito estátuas de sal

Hoje o tempo escorre dos dedos da nossa mão
Ele não devolve o tempo perdido em vão
É um mensageiro das almas dos que virão ao mundo
Depois de nós

Meninos na beira da estrada escrevem mensagens com lápis de luz
Serão mensageiros divinos, com suas espadas douradas, azuis
Na terra, no alto dos montes, florestas do Norte, cidades do Sul
Meninos avistam ao longe
A estrela do menino Jesus

domingo, 30 de janeiro de 2011

Redenção - um conto, várias histórias, nenhuma palavra (até agora)

Um grande amigo - e primo - têm me pedido para ler as linhas que ele têm escrito. Fico muito lisonjeado em me pedirem opinião de um assunto que tão pouco conheço. Aliás, aprendi recentemente o uso correto do termo "inspiração", e digo que estou inspirado quando escrevo. Isso quer dizer que as palavras não são minhas, e que os louros por elas não podem ser destinados a mim. Um exemplo foi o último post, onde pretendia descrever uma experiência recente e acabei enveredando pelos caminhos da solidão do ser. Eu fui apenas a pena, e ainda não vi qualquer crédito dado a uma Parker 51 (uma famosa caneta tinteiro) pelos documentos políticos que ela auxiliou a assinar. No máximo, estão em destaque num museu de um personagem político importante. Pensando assim, até aspiro a estar num museu algum dia, mas como "caneta" de alguém que imprima seus sentimentos no papel ou na tela de um computador.

Enfim, dizia sobre meu primo, e lhe enviei, em resposta, um conto que escrevi há muito tempo. "Redenção" foi inspirado no conto de ficção científica "A filha de Rappaccini", de Nathaniel Hawthorne, uma história pouco conhecida de todos e, até onde sei, pouco disponibilizada. Àqueles que tiverem a impressão de já haver ouvido falar em Hawthorne, sua obra mais famosa é "A letra escarlate". Gostaria de deixar minha fonte a vocês - o conto de Hawthorne - para que compartilhassem dessa experiência comigo, mas, infelizmente, não encontrei nada digital, exceto essa resenha, a qual segue o link abaixo:

http://www.cienciamao.usp.br/tudo/exibir.php?midia=cfc&cod=_afilhaderappaccininathanielhawthorne

De fato, eu nunca "publiquei" esse conto, ou seja, são pouquíssimas pessoas que sabem de sua existência. Menos, ainda, sabem da experiência que tive relativa a ele.

Não sou de ler muito. Demorei um bom tempo para ler essa coletânea de contos (Imortais - organizada pelo impagável Isaac Asimov). Certa feita, estava em viagem no nordeste do Brasil, e me hospedei num hotel às margens do rio São Francisco. Ao abrir a janela (foto), me deparei com uma linda paisagem, que ficou na memória. Quando, algum tempo depois, reli o conto de Hawthorne, tive a nítida impressão de já ter visto o jardim de Rappaccini, descrito tão habilmente. Foi a primeira vez que minha memória "material" foi acionada por uma imagem criada ficcionalmente, e achei isso fantástico. É por isso que esta história é tão especial para mim.

Hoje, ela ganha mais um capítulo, pois estou dividindo com vocês o conto inspirado pela história de Hawthorne. É, infelizmente, um post bem mais longo que os demais, talvez o mais longo já postado nesse blog. Terei de pedir-lhes paciência com minha prolixidade.

Com vocês, Redenção.

_ Restam-lhe poucos minutos, senhor...

Um homem corpulento estendia o braço em direção ao barco que aquecia os motores enquanto as grossas cordas que o prendiam ao cais eram recolhidas. Minhas pernas se movimentaram em direção à proa. Minha mente ainda não tinha direção certa.

A razão desta viagem ainda é incerta. Poder-se-ia dizer irracional. Os poucos que souberam que estava de partida não entendiam minha motivação. Não poderia culpá-los. Eu mesmo ainda não poderia explicar. Como animais que fogem da estação fria, eu fugia de um inverno de sentimentos. Paradoxalmente, eu ia na direção sul. Não haveriam despedidas dessa vez. Nada em terra remetia a algo que se denomina “lar”, exceto uma vaga lembrança, tal ponto escuro numa imensidão azul que surgia da direção da popa enquanto a embarcação ganhava o mar.

Não me dirigia para casa. Era, então, ave de primeira migração... seguia instintos que desconhecia. A mão fatalística do senhor do tempo guiava meus pensamentos.

Um famoso tradutor me disse, sabiamente, que palavras “dizem” certas coisas, mas “significam” outras coisas. Assim, meu bilhete dizia onde deveria desembarcar. Isso não queria dizer que aquele era meu destino. Foi assim que desembarquei na ilha...

A maresia castigou meu olfato, que, abençoado pelas fragrâncias da ilha, impeliu os músculos ao movimento. Até aqui, nada pode-se dizer “pensado”. Numa inversão extravagante, o corpo deu vida à alma. Este, ainda, procurou o abrigo de uma estalagem nos alto dos rochedos. Era noite e os olhos deixaram que os outros sentidos trabalhassem.

Pela manhã, a inexplicável sensação de paz causou-me espanto. Como desperto de um sono profundo, fui recobrando gradualmente a memória da viagem do dia anterior, rememorando até o ponto onde estou. Se ainda não achei tudo uma grande loucura, talvez ainda esteja dormindo.

Abri a pesada janela de madeira. Uma fulgura dourada invadiu o quarto. Meio cego, distingui um pátio que antecedia a uma plantação de flores deliciosamente aromáticas. No meio delas, um espectro feminino bailava graciosamente. Quando firmei-lhe a visão, ele desapareceu, aparentemente buscando um abrigo na folhagem.

Tomei o desjejum e me informei de onde essa insólita empreitada trouxera-me. A ilha tinha o estranho nome de Pedra Ermitã - tradução direta do dialeto aborígene. Não era grande, e servia de parada às naus que iam na direção sul. Ficava a quase um dia de viagem de qualquer local que se diria civilizado. Alguns empregados informaram-me que, por esse mesmo motivo, fora usada como local de exílio, havendo histórias muito tristes que terminavam na ilha. Os rochedos voltados ao oeste eram conhecidos como Tsaawpee (Alívio); mas a palavra usada para Alívio também poderia ser traduzida como Suplício, a depender do que a acompanhava. Isso porque vários exilados tiraram sua vida saltando desta formação. Segundo as lendas, os que mereciam, alcançavam alívio na morte. Outros, porém, iniciavam seu suplício. A atmosfera mística do local me fez concluir que meu “espectro” era apenas mais uma ilusão de óptica. Ainda envergonhado pela louca condição da minha chegada, e procurando não incomodar aqueles que me hospedavam (como mandavam as boas regras de cavalheirismo), não perguntei nada sobre isso.

Passei a explorar a Pedra Ermitã. Praias, pequenas furnas, bichos, plantas... tudo parecia tão distante da minha realidade que me fazia sentir como Pólo nas primeiras incursões marítimas! As crianças me acompanhavam; traziam-me conchas do mar, como se desenterrassem tesouros deixados por um corsário. Acostumei-me com os gritos estridentes de “mangili, mangili” (“surpresa” ou “surpreso”) como me chamavam. E, como descobridores, brincávamos alegremente durante todo o dia. Os sabores das frutas comidas ainda sobre suas árvores, os pés descalços nos regatos, os micos que saltavam sobre nossos ombros em busca de comida... a ilha respirava, movia-se, ou, ainda, em uma palavra: vivia! Mais do que espécimes e belas paisagens, descobri o que me trouxera àquele local abençoado.

Mas, na quinta noite, a insônia me fez ver que ainda havia um espaço vazio. Vira a vida da ilha. Mas ainda havia a morte, a porção intocada que, como criança que se finge dormir para não ter pesadelos, eu ignorava. Disposto a enfrentar o monstro, levantei-me e me coloquei em marcha na direção oeste.

A lua cheia facilitava a caminhada, mas a bruma envolvia o percurso ao Alívio. O ar frio e rarefeito da madrugada começou a faltar em meus pulmões após horas de marcha. Senti isso quando comecei a ver vultos e sombras, especialmente no alto dos rochedos. Dizem que todo homem sente a morte, assim como sente o amor. E eu, que nunca senti o amor e poucas vezes senti o medo, não saberia definir o que sentira ao chegar ao Alívio.

Ao levantar meus olhos, um espectro jazia, inerte, à beira do penhasco, encarando-o. A bruma alva prateou-se, banhada pela argenta luz lunar. Não era um espectro, era o “meu” espectro, o fantasma que vira na manhã subsequente à minha chegada! Via-se, despida do véu, uma figura feminina, de pele clara. Os longos cabelos negros, levemente cacheados, desciam-lhe pelas costas, como regato farto a serpentear pelas pedras. Artemis, mãe da noite, iluminou-lhe a face, que, se mais linda, pertenceria à própria Vênus. Seus olhos eram tão intensos que tentar encontrar-lhes adjetivos seria uma blasfêmia. Pérolas escorriam por eles, e, ao sentir tamanha tristeza, minha razão resolveu despertar-me, momentaneamente, daquele sonho, e concluir que a senhora da tristeza se atiraria ao mar abaixo.

_ N-não... p-por favor, não faça isso! – balbuciei.

Ela levantou os olhos, assustada. Deu-me as costas e se recompôs das lágrimas.

_ Quem és e o que fazes aqui? – perguntou-me uma voz doce, embargada pelo choro, que, assim como o canto das sereias, hipnotizou-me de imediato. Tamanha era minha torpes que só consegui proferir, de imediato, o seguinte:

_ Não quero que você morra...

Minha encantadora deu-me um triste sorriso e caminhou em minha direção. Inerte, nada pude fazer enquanto ela aproximou seus lábios de meus ouvidos a sussurrar:

_ Chegaste tarde. Já estou morta.

Seria possível? Estaria eu, mesmo, tendo uma experiência sobrenatural? Como a morte poderia assumir aspecto tão maravilhoso?

Enigmático, meu fantasma completou:

_ E tu? Vieste me fazer companhia?

Um levante soprou dos rochedos, rasgando a bruma. Meu coração queria saltar do peito. Era momento de voltar a mim, estivesse eu face ao amor ou a morte. Empostei-me, subitamente, virando o rosto para meu algoz, de tal forma que ele se assustou, e disse:

_ Senhora, lhe faria companhia onde estivesse, mesmo que em meio às chamas do inferno!

O rosto ameaçador da senhora da tristeza tornara-se surpreso. Finalmente reconheci-lhe o olor suave de dama-da-noite. Seus olhos, grandes gemas de ônix, fitaram os meus como a procurar respostas que lhe pareciam insanas.

_ Não sabes o que pedes, meu senhor... – e virando-se, iniciou um galope assustado, mas ainda assim harmonioso.

_ Não... – reagi. E com tal palavra, novamente ela tornou-se a estátua de segundos atrás – Não sei de onde vens, não sei o que vieste aqui buscar... sequer sei quem és... é verdade, não sei o que peço. Apenas sei que suplico, insanamente, por algo que sempre procurei. Rogo-te... auxilia-me a entender por que o faço...

Aproximei-me calmamente. Afastei-lhe a cachoeira negra de cachos que lhe cobria a fronte. Toquei-lhe a pele de veludo branco. Sua respiração era forte. Os olhos enchiam-se de lágrimas, enquanto eu escutava seu sussurro, entrecortado por soluços:

_ Eu lhe suplico... meu senhor... não faça isso. Não faça sofrer um coração que já não bate mais... Deixe-me afogar no Caronte de minhas amarguras... Afasta-te dos domínios de...

_ Eu a seqüestraria dos aposentos de Hades e a traria à vida, se lá estivesse...

Ali, coberto pelo manto da noite, beijei-lhe. Seus lábios tinham o mais saboroso néctar jamais provado por um ser humano. Nada é tão maravilhosamente doce. E tamanha doçura me fez adormecer em seus quentes e tenros braços...

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Acordei em outro lugar, frio e escuro. O suor escorria em meu rosto. Quando finalmente recobrei a consciência, uma dor indizível invadiu-me todos os ossos. O gosto alcalino em meus lábios deve ser sangue... onde diabos estou? Tentei me mover, mas a dor impediu meu atrevimento. Uma luz... Deus, não consigo manter os olhos abertos... ela me cega! Que suplício!... Atenção! Escuto algo ao longe... o que é?

_ Mangili... mangili... senhor? Como se sente?

Era a voz de Gaspar, filho de Hawse, dona da estalagem onde me hospedara. Ele me passou uma toalha úmida sobre a fronte e tornou a chamar-me.

_ Nathaniel... por Deus, senhor!

Quando juntava minhas forças para dizer algo, ele se virou. A impressão que tive é que me deixaria sozinho. Afrontando a dor, agarrei-lhe o braço, e ambos gritamos...

_ Onde ela está, Gasp...?

Faltaram-me forças. Quando, novamente, abri os olhos, Hawse me observava com seus olhos matronos. Largou a cestaria que trançava e apanhou um copo de barro. Embebeu um tecido branco no conteúdo e trouxe à minha boca.

_ Não sei como estamos tendo esta conversa, mangili. Quando Gaspar e seus amigos chegaram aqui com o senhor, não lhe dava muito tempo de vida...

Tentei pronunciar alguma coisa... de fato, a mesma pergunta que tentei fazer a Gaspar. Mas a velha parecia ler meus pensamentos.

_ E antes que se esforce inutilmente, não sabemos quem procuras tão veementemente, mesmo em seus pesadelos. Da última vez que a procuraste, no braço de Gaspar, desmaiaste, sem forças. Poderia dizer-me, calmamente, o que aconteceu nos Tsaawpee, do oeste?

_ Hawse... – disse, tentando organizar as idéias e recobrando um pouco as forças – Perdoe-me os modos. Pouco posso dizer que faça sentido... Vi um fantasma, uma mulher, com o olor do orvalho... Deus, Hawse, a mulher mais linda e mais triste que... queria impedi-la de se jogar e...

Minha anfitriã riu-se da puerilidade da minha fala. De fato, quem não riria? Abafou-me a confusão de pensamentos com um aceno de mão.

_ Signorina Rapaccini não iria se jogar, mangili!. Ela apenas gosta de visitar o Alívio certas noites. O motivo, não sei bem...

_ Santo Deus, então ela é real! Hawse, já estava a me tomar por louco, antes dessa frase. Então, foi real!

_ Sim, meu senhor. Mas, e então? Foi a subida aos rochedos ou a noite ao relento a deixá-lo tão debilitado? – dizia a senhora, num riso maternal e simpático, enquanto pegava o copo de barro para dar-me mais água.

_ Foi real, senhora! Meu amor, o beijo e os sonhos em seu colo... onde posso...?

_ Beijaste Beatrice??? - a frase saíra gritada, enquanto a mulher deixava o copo cair, tomada por um espanto mortal. Nada pude dizer, ante o ato. – Deus! Tinha razão em ver a morte em ti, senhor Nathaniel!

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Enquanto me recuperava, Hawse e o filho Gaspar explicavam-me o porquê de seu espanto. Eu já ouvira lendas e histórias fantasiosas parecidas, bem como o nome Beatrice Rapaccini. Mas, nas falas de meus atuais interlocutores, a história ganhara vida – e morte.

Beatrice era filha de um botânico venesiano, que experimentou, na própria filha, extratos de plantas, inclusive venenosas. Do fato, resultou um ser ambíguo, extremamente habilidoso com as plantas – suas irmãs - e letal para os humanos. Nos círculos científicos, doutores riam da fábula, provavelmente criada para parafrasear o excessivo zelo de um pai por uma filha – e só. Era a única conexão disso com a realidade. Mas a ficção não conseguiria ser mais cruel que a vida, e Beatrice, segundo Gaspar, exilara-se na ilha após a morte do pai e de um amor. Hawse completou a tragédia em detalhes, dizendo que ela os matara, involuntariamente, enquanto disputavam o amor de Beatrice.

_ Pobre criança! Tão amada e tão sozinha! Até a morte deixou-a entre os vivos, mesmo apaixonada por ela. – completou minha anfitriã.

_ Preciso vê-la, Gaspar!

_ És louco, mangili? Um beijo quase o matou!...

_ Que importa, Gaspar? Que domínio tem um homem sobre o amor, sobre o destino ou sobre a morte? Só consegue dominar o próprio medo... não a temo, apenas consigo amá-la...

_ Não é possível amar a Orchídea Nera di Rapaccini, mangili...

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_ É assim que os homens me chamavam, quando da morte de meu pai... a Orquídea Negra de Rapaccini...

As lágrimas vertiam dos olhos de Beatrice. Meu espectro ganhara nome, e sua tristeza ganhara história e tragédia. Lembro-me de haver deixado os conselhos de Gaspar, bem como Hawse agarrada ao peito do filho, escondendo o rosto em lágrimas. Segui, desesperançoso, ao Suplício... que só se tornaria Alívio se encontrasse lá Beatrice. Como cheguei, não é algo que a razão possa explicar.

_ A lenda sobre a filha-flor do botânico não passava de conto quando resolvi me refugiar na Pedra Ermitã...

Enquanto falava, um perfume de lírios, não natural naquele período, envolvia o ar. Percebi que a fragrância exalava não do ambiente, mas da flor que comigo falava. Quando cheguei a Suplício, naquela noite, não havia ninguém. Ajoelhei-me, pelo esforço e pelo desespero, em prantos. Foi quando um doce aroma de lilases tomou-me. Levantei o rosto, e lá estava ela, também a chorar, estendendo-me um sorriso tímido.

_ Sempre venho ao Alívio, orar para que Deus perdoe meus pecados, e que me conceda uma morte digna e pouco dolorosa. Há algumas noites, um homem saiu das brumas, querendo salvar-me...

Fiquei desacordado por quase 3 dias e 3 noites. E diante de tudo aquilo, não havia muito o que fazer. Revi toda a minha trajetória: a viagem ao desconhecido, o desembarque na ilha, meu espectro matutino, meu amor noturno, meu suplício, meu alívio, minha vida e minha Beatrice.

_ Entende, agora, por que não posso amá-lo, meu senhor? Essa é minha maldição, conjurada desde meus primeiros anos... sou a flor da escuridão, e morrerei sem um sol que me aqueça... – e sua mão macia acariciou-me o rosto.

_ Então, minha amada Beatrice... serei um sol em constante ocaso, já que não tenho razão em brilhar. Deixe-me dar-lhe vida, seja esta por alguns momentos apenas...

_ Eu não posso permitir que morra, meu...

_ Mas pode dar-me a bênção de viver... eu escolho viver ao teu lado. E se isso significar a morte, que Deus tenha piedade de minha alma...

O ar cheirava a rosas vermelhas, orvalhadas, recém-roubadas por um amante atrevido à sua amada. Cirrus descerravam os finos fios de prata da Lua sobre a Terra. As estrelas apagaram-se um pouco, deixando brilhar a flor que desabrochava. E, neste cenário, Beatrice amou.

Os primeiros raios de sol feriram-me os olhos. Para proteger-me, virei instintivamente para o oeste. À beira do penhasco estava Beatrice, encarando o fundo do mar. Afrontei, mais uma vez, a dor que já se instalara e a fraqueza que tomara meu corpo. Beatrice correu em minha direção, amparando-me, num copioso pranto.

_ Eu não quero que você morra, meu amado!

_ Eu viverei em ti, flor de minha vida!

Intentando acabar com o suplício, segui rumo à beira do Alívio. Encarei o mar e as pedras abaixo e tomei um último fôlego. Antes de terminá-lo, Beatrice tomara minha mão. Beijou-me, apaixonadamente, uma última vez, e soltou-se, junto a mim, penhasco abaixo.

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_ Restam-lhe poucos minutos, senhor...

Uma voz suave sussurrara aos ouvidos de Nathaniel.

_ Você acordará em breve, meu senhor. Mais que seu sacrifício, foi seu amor que me trouxe à redenção. Deus atendeu minhas preces, e finalmente fez do Suplício o Alívio. A semente de vida que me deste foi plantada em ti. Eu o esperarei até momento certo - que não é o dia de hoje - para dar-lhe todo o meu amor, em retribuição ao teu.

Nathaniel acordou na enseada. Seu grito foi ouvido em todos os cantos da ilha. Tornou à civilização, vivendo como numa incompletude até o fim de seus dias. Momentos antes de morrer, apontou para um jarro guardado em sua estante. Lá, os amigos encontraram uma flor desidratada e um bilhete com os dizeres: “Mantenham essa flor em minha mão no meu último suspiro”. Nathaniel morreu sorrindo...

Tempos depois, um botânico, amigo de Nathaniel, descobriu que a flor que o falecido companheiro guardara só crescia num certo penhasco oeste de uma pequena ilhota ao sul. Os nativos a chamavam de Ahuna (esperança).

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Retro-philia: trust in the loneliness

















Bring back that love feeling,
Girl, it's gone, gone, gone...
(Johnny Rivers)

O título é um neologismo. Diplomatas que agem sem diplomacia ainda têm imunidade diplomática. Eu, mesmo não sendo poeta, lanço mão dessa tal de licença poética. "Tá feito e é lindo", como me ensinou Braga i Gaia.

Retrofilia; sinônimo mais bonito: nostalgia; sinônimo mais comum: saudade. Esse último vem do latim "solitas" (solidão).
Não sei qual é o mecanismo (bendito) que nos faz acordar em sociedade e ter a sensação de não estarmos sozinhos. Que ilusão é essa?
Então, num momento que não sabemos precisar (há quem diga que um "gatilho" externo dispara isso, como uma imagem, ou um odor), algo estala, lá dentro, e nos faz sentir saudades. Começamos a lembrar do que se foi, ou, mais precisamente, de que não é mais (presente). Aqui, altero minha pergunta: que percepção distorcida é essa?

A individualidade é nosso distintivo. Não, não vou empreender uma cruzada idiota para justificar que alguns de nós NÃO são seres únicos, dado o pensamento de massa. Até essas pobres almas são individuais na sua tentativa patética de se parecerem com todos os que estão na moda. Aceitemos o fato de sermos únicos. Mas, a partir de agora, passemos a viver com isso - apesar de ter a nítida impressão de que alguns de nós vão, até o final dessas linhas, passar a morrer com isso...

Cada um de nós é um ser único, com um sistema único de significados, uma ordenação própria e inimitável do caos que o circunda, um deus único num universo próprio... cada ser é UM.
Você acorda pelas manhãs, e se encaminha para a mesa de café aliviado(a) por estar "entre os seus"? - em outras palavras, "por não estar sozinho"? Meu caro, minha cara, que peça te pregaram! Dentro desse uni(co)verso no qual você está preso dentro da sua individualidade, não há nada, nem ninguém que o compreenda como você, que viva como você. E se você somar toda a sua empreitada, essa coisa chamada "vida", verá que você está solitário nela.

Retrofilia... nostalgia é um momento mágico, mas que é encarado de três formas. Para todas, usemos a analogia de uma pessoa lançada ao ar, tão forte que ultrapassa as nuvens.
A primeira, a patética e mais comum visão é a de olharmos para baixo e pensarmos: "uau, daqui do alto dá para ver todo mundo que pode voar aqui para cima comigo!" Ela é patética porque pressupõe que as tentativas pífias de verbalizar o sentido e o vivido, ou quem sabe o contato com o "agente causador" fá-la-ão se extinguir em si. Entendamos: nostalgia não se extingue. Não adianta tentar levar quem está ao seu lado, escutando suas histórias das sua golden age, porque isso não te fará sentir menos sozinho. Por fim, estar próximo do que lhe causa nostalgia (livro, filme, música, pessoa etc) também é uma vã ilusão, porque aquilo sempre esteve dentro de você. O que você está fazendo (tentando fazer) é apenas materializar sua solidão para poder usar a o verbo na primeira pessoa do plural: "eu e minha solidão vivemos muito felizes".
A segunda visão, ao ser lançado às nuvens, é a mais verossímil: você olha no nível dos seus olhos, para frente, e não vê ninguém. Isso é a visão da solidão. Quando vemos a verdade, temos muitas reações: alguns vão aos prantos, outros sorriem. Mas não há nada para sorrir ou chorar: há nuvens e você, mais nada. Você reinicia a "queda" ao mundo em sociedade, onde você lembrará, com certa frequência, da visão que teve sobre as nuvens, e o que sentiu lá. E, com uma certa dose de sensatez antes do jantar, se sentará, como Conan, em seu trono solitário e sustentará sua pesada coroa sobre sua preocupada cabeça. Mas viverá feliz com isso, vai por mim. A ilusão da vida em sociedade é um mecanismo de defesa comum a todos, e até útil. Mas não se vicie nele, como se a matrix fosse sua vida. Você apenas cumpre seu papel social em meio a tantas individualidades solitárias. O deus, adão e ordenação em seu universo é você, e só você. Assim, deixá-lo ruir é uma blasfêmia contra si mesmo.
As últimas frases tiveram um tom de "fim de texto", como uma conclusão de contos de fadas - "e viva feliz para sempre". Não esqueci da terceira visão. Lançado sobre as nuvens, há que olhe para cima. E nesse percurso, começa olhando para baixo e, a seguir, para frente. Ele vê, em flashes, o que os dois casos retrocitados viram. E é justamente por isso que ele olha para cima. Se a primeira visão é patética, ela é, ao menos, inofensiva. A segunda é uma realidade. A terceira é virtualmente mortal, porque o pobre bastardo estica os braços, numa tentativa desesperada de alcançar as estrelas e buscar seu igual, já que ele já está consciente de sua solidão. Mas, inevitavelmente, caímos de volta. E se a queda do primeiro é "feliz" e a do segundo é - geralmente - ímpia, a do terceiro é angustiante. Já ouvi dizer que tempestades inteiras foram feitas das lágrimas da agonia desses infelizes, e estas são as que causam mais desastres naturais. E, ao tocar o solo, ele não mais se move, anseando involuir, voltar a ser animal, vegetal e, por fim, mineral, e esperar oceanos de tempo para que seu "meteorito gêmeo" caia dos céus ao seu lado. É uma tentativa de hibernação anti-social. Alguns chamam isso de depressão. Dê o nome que quiser, isso dói. Apenas dói.

O porquê dessas linhas não é deprimir ou alardear. É apenas dividir. Eu divido minha solidão com vocês nessas linhas, como se faz uma sangria para evitar uma amputação. Confesso que olhei para cima quando estive sobre as nuvens, mas, antes de começar a cair, gritei: "sejam felizes, cada um de vocês". Somos como reinos, que, a cada dia, realizamos relações diplomáticas com o reino vizinho ou distante. Importamos e somos solicitados a exportar palavras, sorrisos, gestos, impressões, sentimentos. Como usaremos o que importamos é uma decisão interna do reino - e, a isso, chamamos individualidade. Como cada um usará o que exportamos é decisão deles - e, a isso, também chamamos individualidade.

Sou um reino muito agraciado. Alguns reinos compartilham comigo suas especiarias mais finas, delicadas, secretas, suas jóias mais raras, seus perfumes mais enebriantes, seus licores mais saborosos. Isso se chama confiança. É como se abrissem as portas de seus melhores aposentos a um humilde visitante, sob a saudação: "aqui, você é um rei". Eu sei que não sou, mas me fazem sentir assim. A todos estes reinos, cada um em especial, meu mais sincero agradecimento. Eu os saúdo, e os amo por isso.

Saudações diplomáticas e afetuosas.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Para conjurar o Patronum

Faz tempo que não posto. Muitas vezes passei pelo blog, li e reli alguns posts, tive mil idéias, mas não parei por aqui. É esta correria do dia a dia que me fez parar hoje, um dia que não podia deixar de olhar no espelho da Lua... e isso acontece prá te chamar às suas reais necessidades (escrever, por exemplo).


Em Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, o protagonista tem, num dado momento, que conjurar um feitiço chamado Expectro Patronum, para se proteger de uma grande ameaça, que beira a morte. O mecanismo para isto é resgatar uma lembrança muito feliz, e, então, chamar pela proteção.
Usei os termos "chamar pela proteção" porque a própria interpretação do nome no dito feitiço nos leva a essa idéia:
Expectro: espectro - fantasma - espírito
Patronum: patrono - padrinho - protetor.



Hoje, andando pelo centro da cidade na hora do almoço, procurei resgatar uma lembrança feliz, relacionada com minha família nuclear. E qual não foi o susto ao não conseguir lembrar! Isso mesmo, eu não consegui resgatar a minha lembrança mais feliz! Muitas das situações nas quais me vi nos últimos tempos estão muito mais relacionadas com "alívio" do que com "felicidade". E, sendo um pouco disciplinado com meu pensamento "bruxo", acredito que sejam sentimentos diferentes, com consequências diferentes.

Some-se a isso a introdução do livro que pretendemos estudar num dos grupos de estudos espíritas que frequento, que diz que devemos valorizar nossas pequenas vitórias no campo da reforma interior e continuar a caminhada.

"Conjurar o Patronum" representa tudo o que nos remete à proteção, tudo o que nos leva mais próximos do que consideramos "felicidade". Acredito que o ser humano, no grau evolutivo em que se encontra na Terra, não tem muita condição de distinguir claramente o que vem a ser felicidade. Ele a vislumbra, enevoada, por trás de uma cortina, distante, e esses vislumbres são pontos esparsos - eventos - numa reta, que é sua vida terrena. Agarrar-se, a qualquer instante, à lembrança mais feliz que temos, elevar suas energias e gritar o nome do feitiço é como dizer: "leve-me daqui para aquele momento, porque nada me pode tirar essa alegria". Da mesma forma, é celebrar a alegria de estar vivo, e de poder repetir aquele momento, e repelir tudo o que é contrário à ele. Lembrando da definição do feitiço, isso é a função do nosso "espírito protetor", ou "anjo de guarda". Deixemos os caras trabalharem, e sejamos "afilhados" gratos, facilitando-lhes o trabalho.


Não é a primeira vez que um autor lembra desse conceito, contido na conjuração do Patronum. J. M. Barrie, em sua obra prima (e meu personagem favorito de histórias infantis) - Peter Pan - já dava a fórmula: um pouquinho de Pó de Pirlimpimpim e um pensamento feliz. "Pense uma coisa bem boa, que num instante você voa!"


Agarrar-se às suas lembranças boas pode te levar às nuvens, tirar seus pés da terra... O que você está esperando? Nasce um novo ano, e com ele 365 dias em que você pode voar, só de lembrar das coisas boas que já aconteceram. Mas prá que ficar preso no passado, como um arqueólogo maluco que você conhece? 2011 também surge com 365 dias prá você CRIAR boas lembranças! Hoje é dia de você "abastecer o tanque" para voar amanhã! E amanhã você abastece em vôo prá voar depois de amanhã...

Quanto a mim, eu vi que a rotina, o batidão te atordoa. É fácil se distanciar da "gasolina de vôo" quando não se tem disciplina. Entre a preocupação surgida no fim do horário de almoço e o início deste post, várias foram as lembranças. Tenho, graças a Deus, uma vida muito rica desses momentos, e o ocorrido no início da tarde apenas me chamou a atenção que é necessário ter disciplina para ser feliz e curtir a felicidade. Vivo hoje um momento maravilhoso, e muitas vezes não tenho noção de tudo o que conquistei em matéria de felicidade. E mais ainda: que muito disso está no passado, e que eu, como cientista do passado, não posso negar isso como algo que não pertence ao meu presente. Lembrar do passado não é viver o passado. É preciso disciplina para lidar com isso também, e para transformar isso num impulso em direção à felicidade.

Eis meu presente de Ano Novo para vocês: um lembrete para que possam conjurar seu Patronum. Exercitem isso. É delicioso, e vai te arrancar sorrisos e lágrimas de alegria!

Ah, e não deixem de me contar, por favor. Se vocês conseguirem, vou acrescentar mais uma lembrança boa à lista: o dia em que consegui levar meus amigos a praticarem magia...

Beijos no coração de todos, e um feliz 2011 para nós!

sábado, 1 de janeiro de 2011

365 days to the end of the world


É, 2010 se foi. Muita coisa foi com ele, e muita coisa ainda continua. É, certamente, um ciclo que se fecha, mas há ciclos "plurianuais".
Aos que fecharam muitos ciclos nestes 365 dias, eu os saúdo! Mas também saúdo aos que estão em processo. Eu os saúdo e apresento a visão de uma pessoa comum, que, assim como vocês, também luta para fechar ciclos e seguir em frente.
Escrevi pouco em 2010, e me fez falta. Vocês me verão aqui, onde a lua está mais próxima, mais vezes durante esse ano.

A todos um 2011 de muito trabalho e muitos esforços. Os louros serão consequência dos esforços. Os resultados desfavoráveis só serão derrotas se não forem enlevados esforços. Caso contrário, serão experiências.